quinta-feira, 19 de junho de 2014

Vítimas das chuvas que castigaram o Espírito Santo continuam sem apoio e convivem com destruição

Reportagem percorreu três cidades castigadas pelos temporais que mataram 24 pessoas

Foto: Edson Chagas
Adenilson Ribeiro, no córrego Dois Irmãos, que transbordou com as fortes chuvas de dezembro de 2013 e levou na correnteza a casa de seu Julio Cesar Ribeiro que morreu no desabamento - Especial Chuvas
Ainda sem acreditar, o jovem mostra o Córrego Dois Irmãos, no alto de uma serra em Baixo Guandu. Na véspera do Natal de 2013, o filete de água alcançou três metros de altura e matou quatro de seus familiares. Os corpos de dois deles nunca foram encontrados. “Ainda procuro ao menos os ossos”, desabafa Adenilson Ribeiro, 22 anos.

Seis meses após a tragédia, pouco mudou na vida de Adenilson e de outras vítimas das chuvas que atingiram o Estado, no final do ano passado. Uma enchente que afetou 54 municípios, expulsou mais de 60 mil de casa e matou 24 pessoas.

Os sobreviventes, além da perda de familiares e dos traumas, enfrentam graves dificuldades financeiras. Vivem de aluguel social, as roupas e o que possuem em casa são doações, sofrem com problemas de saúde ou não conseguiram enterrar seus mortos. “Ainda ouço a voz do meu irmão na mata. Era um homem bom, não merecia isso”, diz Adenilson sobre Julio Cesar Cleto, 19, um produtor rural. Além dele está desaparecido o corpo de seu sobrinho, Daniel Cleto, de 3 anos.

Solidariedade

A mãe e a esposa de Júlio, Aparecida, 43, e Tatiana, 15, também morreram soterradas. Foram os vizinhos de uma comunidade próxima, Ibituba, que ajudaram a resgatá-las. Como ficaram isolados pelas chuvas, foi a comunidade que limpou e arrumou os corpos. “Foi um marceneiro daqui que fez o caixão”, conta Glória Oliveira, moradora de Ibituba.
 
Na hora da tragédia todos dormiam na casa, que ficava às margens de uma encosta. Por volta das 2 horas, a água do córrego, misturada a entulhos e pedras, soterrou a residência, arrastando o que sobrou, incluindo as vítimas, por dezenas de metros. A destruição foi tão grande que sobraram poucos vestígios no local: os restos de um tanquinho e vigas.

Adenilson mora hoje na casa de uma tia e toma conta do cafezal de cinco alqueires que agora lhe pertence. Mas anda desanimado. “Tenho que construir uma nova casa, mas a vontade é de ir embora. Dói muito”, relata. 

Queríamos fazer um simulado de alerta de enchentes, mas tivemos que adiar. A população ainda está traumatizada

Darly Dettmann, Prefeito de Itaguaçu

 
O Córrego Dois Irmãos onde ele vive faz parte de uma das quatro comunidades rurais de Baixo Guandu, onde moram aproximadamente 8 mil pessoas. Localizadas em regiões de serra, ficam a mais de uma hora da sede do município. Durante a enchente, alimentos, roupas e remédios só chegavam de helicóptero.

O acesso a esses locais, que já era precário, está ainda pior. Há barreiras ameaçando desabar, estradas perigosas, rios assoreados. Em Baixo Guandu, 40 pontes foram destruídas. Há ainda comunidades, como Alto Mutum Preto, que correm o risco de desaparecer. Toda a vila foi construída embaixo de um barranco que ameaça desabar.

Foto: Edson Chagas
Ponte sobre o rio Guandu com galhos de árvores que podem represar a água em caso de chuvas fortes e elevado nível da correnteza - Especial Chuvas
Semelhanças


Uma situação que não é muito diferente da vizinha Itaguaçu, que enfrentou três enchentes nos últimos quatro anos. Na semana do Natal ficou completamente alagada, em alguns pontos a água chegou a um metro e meio. Até o prefeito da cidade, Darly Dettmann, foi desalojado.

Quando o nível da água abaixou, após cinco dias, estradas, dezenas de casas, escolas, unidades de saúde, prédios públicos e 20 pontes tinham sido destruídas. Com recursos próprios o município tenta reverter a situação, mas já não há dinheiro.



Na cidade onde vivem pouco mais de 14 mil habitantes, seis pessoas morreram. Três delas na zona rural e outras três na sede municipal, em Barro Preto.

Lá morava a família do casal Neusa Aparecida Borges, 44, e José Vitorino Venke, 41 anos. Com graves problemas de saúde eles sobreviveram ao soterramento que matou três de seus familiares: a mãe, Odília Marcelino Borges, 84; a nora Claudiana Nogueira Paixão, 21, grávida de oito meses; e o neto, João Pedro Paixão, de um ano e dois meses.

Minha irmã também foi desabrigada pela chuva mas se recusou a ficar conosco. Naquela madrugada nossa casa foi soterrada.

Neusa Borges, Vítima de Itaguaçu

 
Na madrugada da véspera de Natal, uma avalanche de terra soterrou a casa de dois andares. No local só sobrou a laje da garagem. Neusa e Vitorino foram resgatados gravemente feridos. “Estávamos dormindo e acordamos embaixo dos entulhos”, relatam. Ambos apresentam problemas na coluna. Ele não consegue mais trabalhar nem se aposentar, e ela tem dificuldades para falar e andar. Em meio a lágrimas, ela acrescenta: “Perdemos tudo, tudo”.

Foto: Edson Chagas
Neusa Aparecida Borges no local onde era sua casa, bairro Barro Preto, que foi levada por avalanche de terra provocada pelas fortes chuvas de dezembro de 2013 - Especial Chuvas
O casal recebe aluguel social e tenta se manter com a renda de um pequeno salão, no centro de Itaguaçu. Conta com a ajuda do filho, Danilo Borges Paixão, 27. Um jovem que não consegue expressar a perda da esposa grávida e do filho. “Já era calado, agora quase não fala”, conta Neusa, cujas lágrimas aumentam quando lembra do bebê que estava por nascer. “Era uma menininha”.

Sem recursos

Danilo e Claudiana moravam na zona rural, mas estavam na casa de Neusa a pedido médico. A jovem estava no oitavo mês de gravidez. No dia da tragédia, Danilo tinha ido conferir a situação da propriedade e assim escapou do soterramento. Tudo o que sobrou foi uma pequena bolsa com as roupinhas do bebê, encontrada pela Defesa Civil.

Na mesma rua onde a família morou por mais de 20 anos, outras três casas foram atingidas, sem vítimas. A região é considerada agora de risco iminente. Novos deslizamentos podem ocorrer se voltar a chover, mas não há perspectivas de que obras possam ser feitas na região por falta de recursos.

A prefeitura local já adquiriu um terreno para construir as casas para as famílias que foram desabrigadas, mas os recursos não chegaram. Algo que desespera Neusa e Vitorino. “Perdemos tudo. Não tenho como comprar uma casa”, diz Neusa.

Comércio

Foto: Edson Chagas
Romulo João Gatti, proprietário do supermercado Gurizão que ficou alagado com inundação do Rio Doce em dezembro de 2013 - Especial Chuvas
Nos dois municípios grandes perdas também foram registradas no comércio. Em Itaguaçu, o Supermercado Pagel ganhou destaque quando a população disputou os alimentos que estavam sendo descartados. “Aquilo foi por desespero. Nada poderia ser aproveitado”, relata o proprietário Celso Pagel. 

Ele se emociona quando anda pelo galpão de estoque. “Em 30 anos nunca ficou vazio como agora”, diz, relatando com exatidão o tempo de alagamento: “Foram cem horas”. Pagel estima seu prejuízo em mais de R$ 1,3 milhão.

Abrigo

Outro que se emociona quando lembra dos dias de enchente é o padre Paulo Bosi Dal’Bó. Ele abrigou mais de 1.200 pessoas em sua igreja, incluindo os primeiro bombeiros que chegaram à cidade, cujo barco virou e tudo perderam.

Relata que os primeiros gritos de socorro foram ouvidos na manhã do dia 21 de dezembro de 2013. Antes que a manhã terminasse a igreja já estava lotada. Naquela noite dormiram nos bancos e no chão, sem colchões ou lençóis. “Mas todos foram acolhidos”, destaca o padre, cuja igreja se transformou no centro de controle de operações para os militares estaduais, do Exército, da Força Nacional e de voluntários.

Para o padre, a tragédia deixou várias lições. Uma delas é de que a solidariedade ajudou a superar a tragédia. “As doações não deixaram que nada faltasse e o trabalho voluntário salvou vidas”. Também ensinou, destaca, que é preciso repensar a gestão das cidades. “Muitas construções, até de prédios públicos, estão sendo feitas às margens dos rios”, pondera, preocupado com o risco de novas enchentes.

Colatina: em meio a entulhos, moradores tentam recomeçar suas vidas
 
Foto: Edson Chagas
Claudio Roque, desabrigado do Bairro São Marcos onde deslizamento de terra em dezembro de 2013 derrubou casas matando várias pessoas - Especial Chuvas

Desde o dia em que ocorreu o desabamento que matou sete pessoas, no bairro São Marcos, em Colatina, nada mudou. Uma montanha de entulhos com os restos das casas, dos móveis e objetos pessoais das vítimas lembram um cenário de guerra e não permitem que os vizinhos e parentes se recuperarem da tragédia.

Elas estavam tão felizes com a nova pintura do quarto, as roupas e os sapatos novos. Nem puderam aproveitar...

Orleide Costa, Mãe de duas vítimas

 
E o pior: sem um trabalho de contenção no local há o risco iminente de novos desabamentos. Tanto que uma creche situada no alto do morro (muro verde na foto ao lado) foi desativada.

Uma situação que revolta Claudio Roque Almeida, cuja casa foi parcialmente atingida pelos destroços no dia em que comemoraria os 15 anos da filha. “Desde então vivo de aluguel social sem a perspectiva de quando esta situação vai mudar”, desabafa.

Tragédia

Logo em frente a casa dele morava Orleide Almeida Costa, 29, e suas três filhas. Ela e os tios, que viviam ao lado, estavam animados com o almoço que fariam no Natal. O ex-marido, William Gomes, visitava as filhas.

No dia anterior, 24, Orleide foi trabalhar bem cedo. Vestia o uniforme quando foi surpreendida com a visita do ex-marido. “Machucado e em desespero, pedia perdão por só ter salvado uma de nossas três filhas”, conta, em prantos. “Minha vida acabou naquele momento”, acrescenta.

Foto: Edson Chagas
Orleide Almeida Costa perdeu as filhas Karolayne e Ana Carolina no desabamento de sua casa levada por deslizamento de encosta no bairro São Marcos nas fortes chuvas de dezembro de 2013 - Especial Chuvas
De sua casa, nada sobrou. Os corpos de suas filhas – Karolayne, 7, e Ana Carolina, 9 –, foram resgatados três dias depois. Com elas morreram ainda seus tios, uma prima e dois vizinhos. Semanas depois sua avó, 69, não resistiu à dor das perdas e morreu. “É muito difícil. Só não enlouqueci porque ainda tenho dois filhos para criar”, diz Orleide.

Seu relato é feito em uma casa de três cômodos, onde vive com a filha Crislaine, 4, no bairro Airton Senna, afastado do centro de Colatina. No espaço mal iluminado e úmido pelas infiltrações da chuva estão as poucas coisas que recebeu de doação. “Quando chove a Crislaine entra em desespero”, conta a mãe enquanto acaricia a única foto das filhas falecidas, recuperada dos entulhos. No dia da tragédia seu filho Leandro, 2, estava com uma tia, com quem ainda mora.

Seu desespero aumentou na última semana, quando soube que um golpista está usando sua tragédia para vender rifas na cidade. “Não vendo rifas. Trabalho como merendeira”, diz, revoltada. Tudo o que ela deseja é uma casa para recomeçar a vida. “É um sonho”, desabafa.

Recomeço também é o sonho de muitos comerciantes de Colatina, cujas lojas foram completamente destruídas. Um delas é a Casa das Rações. Seu dono, Claudio Marcos Zaché, estima o prejuízo em R$ 1,6 milhão. “Reabrimos, mas é difícil recuperar o pique”, conta Claudio. Preocupado com o risco de novas enchentes, decidiu procurar outro espaço para abrigar seu estoque.

Recursos federais para a reconstrução das cidades e das casas não chegaram

A maior parte das 54 prefeituras que foram atingidas pelas fortes chuvas de dezembro do ano passado ainda não conseguiu dinheiro para reconstruir suas cidades. Além de pontes e estradas que precisam ser refeitas, a maior dificuldade é garantir uma nova moradia para as famílias que foram desabrigadas.
 

Em Baixo Guandu, por exemplo, a expectativa era receber R$ 42 milhões do governo federal. “Reduziram para R$ 1,4 milhão”, conta o prefeito Neto Barros. Com o dinheiro só poderá fazer quatro, das 42 pontes que foram destruídas.

Lá existem 37 famílias que vivem com aluguel social de R$ 475 mas os recursos para a construção das casas não chegaram. “Tivemos ajuda do Estado durante as enchentes e apoio com máquinas para recuperar estradas, mas ainda tem muito para ser feito”, diz Neto Barros, que investiu R$ 1,6 milhão de recursos próprios.

Semelhanças

Foto: Edson Chagas
Rio de Itaguaçu que transbordou e inundou a cidade com as chuvas de dezembro de 2013 - Especial Chuvas
A cidade vizinha, Itaguaçu, precisava de R$ 18 milhões, mas o governo federal decidiu mandar R$ 5,5 milhões. “Só vou poder fazer nove das 40 obras que eram necessárias”, relata o prefeito Darly Dettmann, que já investiu R$ 2 milhões de recursos na recuperação de sua cidade.

Lá além das estradas e prédios públicos reformados, 20 pontes foram destruídas. Cinquenta famílias foram desabrigadas e vivem de aluguel social no valor de R$ 350.

Colatina aguarda os recursos federais para fazer a contenção da encosta que desabou em São Marcos. “Recebemos a primeira parcela no valor de R$ 3 milhões”, relatou o prefeito Leonardo Deptulski. A cidade vai receber R$ 9,7 milhões dos R$ 38 milhões que pediu ao governo federal.

Deptulski já adiantou que só poderá fazer sete das 24 obras planejadas. Mas como já tinha em andamento, antes da enchente, um projeto “Minha Casa, Minha Vida”, terá condições de destinar pelo menos 80 moradias para moradores da cidade que ficaram desabrigados.

Em Colatina, 300 famílias estão sem casa e 256 vivem de aluguel social, de R$ 600. “Vamos tentar convênios para garantir a construção de outras casas”, diz o prefeito.

A preocupação dos prefeitos e que um novo período de chuvas fortes, no final do ano se aproxima e as cidades ainda não conseguiram se recuperar. 

Apoio do Estado

Ilustração sobre prejuízos causados pelas chuvas no EstadoO Estado assinala que investiu R$ 400 milhões de um total de R$ 540 milhões que havia prometido para a reconstrução. Parte destes recursos – R$ 87 milhões – foram aplicados na recuperação de rodovias e pontes.

Cerca de R$ 16 milhões foram para o cartão reconstrução destinado às famílias e quase R$ 13 milhões na construção de casas em cinco municípios. “Também investimos R$ 24 milhões em máquinas que ajudaram os municípios a recuperarem suas estradas”, destaca o secretário da Casa Civil, Tiago Hoffmann.

Ele reconhece que a maior dificuldade dos municípios decorre dos recursos federais que não chegaram. “Há cidades, como Vila Velha, que não vai receber nada”, relata. Para piorar a situação, acrescenta, estas mesmas cidades já tinham tido redução de receitas com o fim do Fundap.

Hoffmann garante que, dentro das possibilidades, o Estado vai tentar ajudar os municípios. “Não na velocidade que precisam, mas terão nosso apoio”, pontua.

Fonte: A Gazeta

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